A Cidade de Deus
Santo Agostinho
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Esta é uma colecção de notas pessoais da leitura da obra A Cidade de Deus de Santo Agostinho. De modo algum substitui a leitura desta obra-prima, e pretende naturalmente aliciar o leitor a conhecê-la em profundidade. As reflexões aqui apresentadas não são as de Santo Agostinho, mas as minhas, inspiradas na palavra do santo.
LIVRO I
Capítulo VIII
Quase sempre as graças e as desgraças são comuns a bons e maus
Neste planeta, a distribuição dos bens e dos males parece ser casual, ou, pelo menos, não vemos imediatamente um sentido coerente. Temos concepções de “bem” e “mal” um tanto superficiais e pensamos que elas se reduzem à vida terrena, material, temporal. Por causa destas concepções imperfeitas, uma queixa comum que favorece o ateísmo é que coisas más acontecem a pessoas boas, e coisas boas acontecem a pessoas más. Parece-nos injusto, e o sentimento de que a Criação é injusta, ou de que "a vida é injusta", como se diz tanto por aí, distancia-nos da realidade e natureza de Deus e pode provocar duas situações: ou passamos a ver Deus como um juiz severo, incoerente e jocoso, ou nos entregamos à ideia de que Deus não existe - assim parece ser mais fácil aceitar a crueldade deste mundo. Queremos julgar nos nossos termos e com o nosso pequeno intelecto, mas não alcançamos a noção verdadeira de justiça e misericórdia divinas. Perguntamo-nos então, se Deus existe, por que ele permite que coisas más aconteçam a pessoas de bom carácter, e por que permite que coisas boas venham a pessoas de carácter ímpio?
Santo Agostinho responde a este dilema de forma magistral: os bens e males temporais, terrenos, são comuns a todos, porém, na outra vida, os bens estarão reservados aos bons, ao passo que os ímpios serão atormentados por males que não tocarão os justos. No que toca à "outra vida", já não falamos de coisas temporais, mas de coisas eternas. Na nossa passagem pela vida terrena vivemos num ponto de tensão entre as duas dimensões: somos carne, mas também alma, somos mortais, mas de potencial imortal, vivemos no tempo, mas caminhamos para a eternidade. Por esta nossa natureza, temos acesso às coisas eternas, mas este acesso é sempre fugaz e imperfeito, pois vivemos no tempo. É por vivermos neste ponto de tensão que devemos procurar esmiuçar as diferenças entre os bens e males temporais e os bens e males objectivos e eternos.
Segundo Santo Agostinho, no nosso mundo os bens materiais são concedidos aos maus para que não os julguemos bens supremos; e são concedidos aos santos para que não pensemos que não são bens; são concedidos aos maus para que se saiba que ninguém é tão mau a ponto de não poder ser recompensado por qualquer bem que pratique; concedem-se aos bons para que se animem e perseverem. Se fossem concedidos apenas aos bons, julgar-se-ia que só por eles se tornariam bons; se fossem concedidos só aos maus, os bons não se converteriam.
Os bens temporais são comuns a todos porque são perecíveis, têm causas materiais, e servem propósitos terrenos. Pela sua natureza não estão, de forma absoluta, agarrados às questões espirituais.
Entendemos por bens materiais aqueles que produzem prazer material, sem necessariamente terem impacto positivo no espírito, e sem necessariamente serem causados por um carácter bondoso:
Por exemplo, a riqueza material: uma pessoa pode possuir riqueza e nunca chegar a ser bondosa e, pior, pode adquirir riqueza por acções imorais. A qualquer momento, qualquer pessoa pode perder toda a riqueza sem que para isso tenha feito algo maldoso. Portanto, a riqueza material é um bem perecível e não actua necessariamente no espírito ou no carácter. Existem exemplos de pessoas que se corromperam na riqueza material, e existem exemplos de pessoas que se aperfeiçoaram moralmente por meio (não por motivo) da riqueza material.
Outro exemplo: os prazeres do corpo, que englobam tudo aquilo que produz bem-estar ou prazer físico, desde a comida aos jogos, e do descanso ao sexo. Todas estas coisas independem do carácter para serem desfrutadas e todas elas podem ou não ser meios de corrupção moral ou de conversão.
Outro exemplo: a fama. No nosso mundo, a fama pode ser associada a prestígio ou a desgraça. Uma pessoa pode ser famosa por bons ou maus motivos, e, estranhamente, muitas pessoas procuram a fama a qualquer custo. Uma vez adquirida, a fama pode ou não ser um meio, tanto de corrupção moral como de aperfeiçoamento.
E em relação aos males terrenos observamos algo semelhante:
A pobreza material não é um factor inequívoco e decisivo no destino do carácter de alguém. Houve e há muitos santos que são pobres, e sempre fez parte da vida monástica a renúncia à riqueza material; há pessoas pobres que são mais bondosas e mais felizes do que muitos ricos, assim como há pobres miseráveis e de péssimo carácter. Também a pobreza é perecível e acidental, pois não é certo que uma pessoa seja pobre toda a vida.
Os males do corpo: há muitos doentes físicos que são pessoas exemplares em termos de carácter, e que até chegam a inspirar-nos e humilhar-nos pela nobreza e dignidade com que passam pelas provações. E, pelo contrário, há pessoas que facilmente deixam sucumbir o seu ânimo e energia perante o mais pequeno sofrimento físico.
O anonimato: embora seja constantemente publicitado o desejo de fama na nossa sociedade, muitos de nós preferem o anonimato e trabalham melhor sem as exigências da requisição externa, enquanto outros se sentem miseráveis por não serem vistos e amados por todos.
Vimos que os bens e os males temporais não têm ligação causal, óbvia e directa com os bens e os males espirituais. Um bem espiritual pode brotar em nós tanto no meio de uma provação, como no meio de um prazer. E o mesmo pode um mal espiritual.
Existe também uma dimensão subjectiva nos bens e males temporais, pois o que para um parece bem, para outro pode parecer mal, por isso seria melhor tratar destas noções mais propriamente como “coisas prazerosas” e “coisas dolorosas”; ao passo que o Bem espiritual é objectivo, real e eterno.
Em todos estes exemplos vemos que não são os bens ou males temporais em si que produzem um carácter nobre ou ímpio, mas sim o que cada um faz com as circunstâncias que lhes calham.
Santo Agostinho coloca desta forma:
“Efectivamente, o homem bom nem se envaidece com os bens temporais, nem se deixa abater com os males. Pelo contrário, o homem mau sofre na infelicidade, porque se corrompe na felicidade.”
ou
“Daí que, na mesma aflição: - os maus abominam a Deus e blasfemam, e os bons dirigem-Lhe as suas súplicas e louvam-No. O que mais interessa não é o que se sofre, mas como o sofre cada um.”
Para finalizar, se os bens temporais acontecessem apenas aos bons e justos, corríamos o risco de sobrevalorizá-los e considerá-los virtudes ou bens eternos.
10 de Março de 2021
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