A Vida Intelectual
A.-D Sertillanges
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Este resumo não se propõe a substituir a leitura da bela obra do Pe. Sertillanges, mas pretende apresentar o núcleo dos ensinamentos por ele transmitidos, aliciando o leitor a conhecê-la em profundidade. Uma das finalidades no LABORATORIUM é fazer uso do conhecimento do passado ao olhar o presente, portanto procuraremos atender aos problemas contemporâneos ao estudar esta obra. Este resumo é, simultaneamente, um manual de estudo e uma reflexão filosófica.
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Capítulo VI – O espírito do trabalho
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Eis o espírito que nos deve acompanhar em todas as horas: o espírito de zelo. S.Tomás recomenda ao discípulo: «Tira sempre as dúvidas». Basta um olhar superficial pelos principais meios de comunicação globais para ver o quanto este princípio é violado. Quantas vezes se substitui a fidelidade aos factos e à verdade pela fidelidade a narrativas impostas pelo poder político? Repare bem nas notícias que recebe todos os dias. Elas são a paisagem vista por um recorte numa janela, não são, de facto, os acontecimentos em si. Nesta analogia, para vermos a verdade precisamos sair de casa, porém, muitos de nós contentam-se em fixar-se no mesmo quarto para ficar vendo o mundo pela mesma janela.
O intelectual consagrado não se restringe às sombras da caverna. Ele procura a luz, procura o mundo real.
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I – O ardor da investigação
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O homem é o único ser neste planeta que foi criado para se transcender a si mesmo. Todos, em maior ou menor grau, temos o impulso de conhecer. Conhecer é, de certo modo, absorver aquilo que está fora da consciência. É este impulso que permite à criança o acentuado crescimento que ela experimenta. Ele manifesta-se em perguntas: porquê? como? o quê?, etc.
«A alma não envelhece, cresce sempre; em face da verdade, é eterna criança». O intelectual consagrado trabalha para buscar as respostas às perguntas da alma, e o seu compromisso com a verdade fá-lo-á ser diligente nas suas descobertas. O erro é uma possibilidade latente.
“Portanto, o homem de estudo há-de estar sempre à escuta da verdade. Enquanto vive curvado sobre a mesa de trabalho, o Espírito sopra nele, revela-se talvez fora, envia os seus profetas, homens, coisas, livros, acontecimentos: que a alma atenda, não deixe escapar nada porque este espírito da verdade, como a graça, muitas vezes passa e não volta.”
«O inimigo capital do saber é a indolência». A vida intelectual não é para os preguiçosos, e qualquer um de nós pode atestar este facto numa observação rápida sobre si mesmo. A preguiça mental não se traduz propriamente na ausência do pensamento, pois pensamento é constante; antes, ela manifesta-se nos padrões do pensamento, que são, em grande medida, automáticos. A atenção é o instrumento de domínio do pensamento, e para usá-la é necessário o esforço da vontade. Leonardo Da Vinci dizia: «Tu, oh Deus, vendes os bens aos homens pelo preço do esforço».
Por vezes somos reféns das nossas disposições. Esperamos trabalhar sempre com inspiração e leveza, facilmente desistindo quando esses elementos não se fazem presentes. Precisamos do hábito para estabelecer uma segunda natureza que sirva o nosso equilíbrio. Porém, uma coisa é certa: quem não está disposto a padecer das dores próprias da vida intelectual, mais vale procurar outro caminho, pois não é esta a sua vocação.
“O autêntico pensador aplica-se ao trabalho com disposições diferentes; empolga-o o instinto de conquistador, um ardor, um entusiasmo, uma inspiração heróica. O herói não se fixa nem se limita (...) e só na morte vê o termo da carreira.”
A tentação e o malefício da preguiça não são exclusivos do nosso ofício, mas são, para o intelectual, potenciais exterminadores. Não os vencemos de uma vez para sempre, mas todos os dias de novo. Mesmo os homens de grande autoridade intelectual são passíveis de serem conquistados pela indolência.
“O infinito, que se desdobra diante de nós, requere o infinito do desejo para corrigir, na medida do possível, o desfalecimento da nossa força.”
Ideias-chave deste subcapítulo:
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Eis o espírito que nos deve acompanhar em todas as horas: o espírito de zelo. Devemos sempre tirar as nossas dúvidas.
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«A alma não envelhece, cresce sempre; em face da verdade, é eterna criança».
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«O inimigo capital do saber é a indolência».
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Precisamos do hábito para estabelecer uma segunda natureza que sirva para o nosso equilíbrio.
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Quem não está disposto a padecer das dores próprias da vida intelectual, mais vale procurar outro caminho, pois não é esta a sua vocação.
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O autêntico pensador aplica-se ao trabalho com disposições diferentes.
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II – A concentração
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Concentração é o contrário de dispersão. Como referimos há pouco, a atenção é um instrumento de domínio do pensamento, e para usá-la bem, usamo-la como uma lupa que, recebendo os raios solares, forma um feixe de luz concentrada que incide sobre o nosso objecto de estudo.
Deste modo saberemos empreender o máximo de energia em cada tarefa. É importante ter o trabalho planeado, o que não significa que é proibida a espontaneidade. Por vezes saímos dos planos, mas isto não se traduz numa dispersão, e sim num acrescento. Não é invulgar sermos levados por caminhos que não esperávamos e que se afiguram ainda mais proveitosos do que aquele que havíamos programado. Ainda assim, devemos manter a organização do trabalho, e a atitude ideal para melhor concretizar o que nos propomos é fazer uma coisa de cada vez.
Se adoptarmos esta técnica, podemos (e até certo ponto devemos) ter em mãos vários trabalhos, contando que no tempo de cada um nos ocupamos apenas dele. Este modo de trabalhar permite-nos manter o espírito mais livre e aberto, atento às ligações e dependências que se revelam na realidade. Lembrem-se do que falamos sobre a ciência comparada.
“Um dos efeitos desta concentração será a escolha no meio da massa confusa que ordinariamente se nos antolha por ocasião das primeiras pesquisas. Pouco a pouco, tiram-se a limpo as ligações essenciais, e é nisto que sobretudo consiste o segredo das obras grandiosas. O valor não está na multiplicidade, mas nas relações de alguns elementos que governam todo o caso, ou todo o ser, e nos mostram as leis que o regem, permitindo ao investigador a criação original, a obra em relevo e de sólido alcance.”
Ideias-chave deste subcapítulo:
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Concentração é o contrário de dispersão.
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É importante ter o trabalho planeado, o que não significa que é proibida a espontaneidade.
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A atitude ideal para melhor concretizar cada tarefa é fazer uma coisa de cada vez.
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III – A submissão à verdade
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“Pelo pensamento encontramos alguma coisa, não a fazemos; quem recusa submeter-se ao pensamento, não o encontrará, e não se submeter de antemão é esquivar-se ao seu encontro. Cedendo à verdade e exprimindo-a o melhor possível, sem alteração criminosa, praticamos um culto ao qual o Deus interior e o Deus universal responderão, revelando a sua unidade e estabelecendo sociedade com a nossa alma. Nisto, como em todo o mais, o inimigo de Deus é a vontade própria.”
Podemos também dizer que o inimigo da verdade é a vontade própria. Não a vontade inspirada, iluminada pelo Espírito, coerente com a vontade divina, mas sim a vontade tecida pelo orgulho e vaidade humanos. A verdade requer de nós obediência imediata. «A verdade só se entrega a quem primeiro se despoja e se decide a contentar-se exclusivamente com ela». A verdade exige o testemunho e a admissão, isto é, o acto de ver o que é e dizer o que é.
Vejamos um exemplo prático de adulteração da verdade: na nossa sociedade é aceita a expressão "mudança de sexo" para significar o acto imaginário de transformar um homem concreto numa mulher concreta ou vice-versa. Mas vejamos os factos: o sexo do bebé está definido já no espermatozoide. Por meio da reprodução assistida é possível escolher o sexo da criança seleccionando os espermatozoides que vão ser implantados, mas não modificar a sua identidade sexual.
Nem a cirurgia plástica, nem tratamentos hormonais, nem performances afectadas podem realmente modificar a identidade biológica de um homem ou de uma mulher. Este é um campo no qual o ser humano não tem jurisdição. Há pouco tempo atrás, a "transexualidade" era chamada de disforia de género, e significava que a pessoa tinha extrema dificuldade em aceitar a sua identidade sexual, e por isso projectava no género oposto o ideal que queria para si. Apesar de esta condição nunca haver mudado, os termos com que a expressamos mudaram, de forma a que ela seja aceita como uma decisão de vida, e não uma condição mental nefasta. A verdade é que, ao tornar isto "normal", que outras coisas estamos também a normalizar? A mutilação genital, histerectomias (remoção do útero), mastectomias (remoção dos seios), etc. Vejam que estes procedimentos são geralmente uns dos últimos recursos para pessoas que sofrem de cancro. Não queremos alongar-nos aqui, pois podemos explorar este tema mais tarde e em outro contexto. O essencial é o seguinte: adulterar a verdade produz sociedades desumanas, afasta-as da sua natureza e corrompe a moral.
“Poder-se-ia definir o estudo, dizendo: é Deus que toma, em nós, consciência da sua obra. Como toda acção, a intelecção vai de Deus a Deus através de nós. Deus é a causa primeira e o fim último da intelecção: na passagem, o nosso eu, com suas loucas pretensões, pode apartá-la dessa direcção. Abramos antes os olhos com humildade para que o nosso Espírito inspirador veja.”
A nossa força intelectual é proporcional à nossa receptividade, por isso o intelecto é potência passiva. Precisamos saber ver o que se apresenta a nós antes de fazer alguma coisa. A inspiração vem àquele que se abre, não ao que se enche da sua própria vontade e cuja atenção permanece no campo da acção. Todos temos esta experiência: as grandes ideias vêm ao nosso pensamento, não somos nós que a inventamos. E quanto maiores em nobreza e verdade elas são, mais provável é descobrirmos que alguém já as pensou antes de nós.
“Em que consiste o trabalho profundo? Em deixar-se penetrar pela verdade, mergulhar, afogar-se nela muito suavemente, deixar de pensar que se pensa, ou que se vive, ou que existe no mundo alguma coisa além da verdade.
(...) só sois verdadeiramente o que sois, quando vos dais a uma realidade que vos transcenda: perdendo-vos, exaltai-vos»”
Estar dependente da verdade é mais fecundo do que longas e exaustivas horas de estudo perdido em abstracções. Lembremo-nos da justa medida do esforço, que falámos no Capítulo III.
A verdade pode brotar de qualquer fenda, e mesmo do lugar mais inesperado. São Tomás ensina: «Não repares donde vêm os ensinamentos, mas confiai à memória tudo o que se disser de bom». Fazemos bem em confiar em certas autoridades intelectuais, contando que o façamos na medida certa, sem fanatismo e com o senso da verdade em primeiro lugar. Mas também é bom que esse senso da verdade esteja tão apurado em nós, que a reconheceremos em qualquer parte, vinda de qualquer boca, mesmo daquelas que antes não possuíam autoridade.
Assim vamos edificando a nossa vida intelectual. Para ser um homem livre, há que ser escravo da verdade.
Ideias-chave deste subcapítulo:
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O inimigo da verdade é a vontade própria.
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A verdade requer de nós obediência imediata.
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«A verdade só se entrega a quem primeiro se despoja e se decide a contentar-se exclusivamente com ela».
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A verdade exige o testemunho e a admissão, isto é, o acto de ver o que é e dizer o que é.
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A nossa força intelectual é proporcional à nossa receptividade, por isso o intelecto é potência passiva.
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Estar dependente da verdade é mais fecundo do que longas e exaustivas horas de estudo perdido em abstracções.
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«Não repares donde vêm os ensinamentos, mas confiai à memória tudo o que se disser de bom».
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Para ser um homem livre, só sendo escravo da verdade.
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IV – Alargamentos
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“Isolo uma peça dum mecanismo, a fim de a considerar mais detidamente; mas enquanto a tenho nas mãos e examino, o pensamento deve repô-la no seu lugar, vê-la accionar no todo, sem o quê a verdade ficará alterada.
A verdade é una; tudo depende da Verdade suprema; entre um objecto particular e Deus interpõem-se as leis do mundo, cuja amplidão vai crescendo desde a norma aplicada a esse objecto até ao Axioma eterno. Mas o espírito do homem também é uno e não pode satisfazer-se com a mentira das especialidades consideradas como divisão da verdade e da beleza em fracções esparsas.”
Se há pouco falámos de concentração, agora falamos de alargamento. Concentração é a convergência da atenção para um ponto. Alargamento é a noção de que esse ponto é o centro de um vasto conjunto. O senso do universal e a busca da unidade é o que caracteriza a filosofia.
A verdade é viva. Não se fecha em palavras ou livros. Para vê-la é preciso uma literacia superior, uma que saiba penetrar nas entrelinhas de um texto, que saiba povoar o imaginário com as ideias ou palavras ausentes. É preciso usar a imaginação no seu mais alto nível, não a que fantasia, mas a que se move nos domínios do Ser.
Ideias-chave deste subcapítulo:
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Concentração é a convergência da atenção para um ponto. Alargamento é a noção de que esse ponto é o centro de um vasto conjunto.
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O senso do universal e a busca da unidade é o que caracteriza a filosofia.
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Para ver a verdade é preciso uma literacia superior. É preciso usar a imaginação no seu mais alto nível.
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V – O senso do mistério
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Ainda que possamos vir a conhecer muitas coisas, será sempre incomensuravelmente maior o volume de coisas que ignoramos. É um dado da realidade. Nenhum homem tem a possibilidade de conhecer a verdade na sua totalidade, ou, por outras palavras, de ser omnisciente como Deus é. Captamos a verdade aos poucos, em doses homeopáticas. Permanecei com isto na consciência e evitareis perder-vos no orgulho e vaidade desmesurados.
«Quem julga compreender tudo, prova que nada compreende». A nossa missão pede cautela, como já foi referido em vários momentos. Vivemos numa estranha dimensão, no ponto de tensão entre o tempo e a eternidade, entre o finito e o infinito, entre o universal e o particular. Que isto esteja também presente na nossa consciência ao buscar respostas.
“Um carácter nobre sabe que as nossas luzes são apenas degraus de sombra por onde ascendemos à claridade inacessível. Balbuciamos e o enigma do mundo é perfeito. Estudar é precisar algumas condições, classificar alguns factos: só estuda a valer quem põe este pouco debaixo dos auspícios do que ainda ignora.”
Ideias-chave deste subcapítulo:
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Nenhum homem tem a possibilidade de conhecer a verdade na sua totalidade.
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«Quem julga compreender tudo, prova que nada compreende».
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Estudar é precisar algumas condições, classificar alguns factos, com a consciência do que se ignora.
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NO PRÓXIMO CAPÍTULO
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Capítulo VII – A preparação do trabalho
A - A LEITURA
I – Ler pouco
II – Escolher
III – Quatro espécies de leitura
IV – O trato com o génio
V – Conciliar em vez de opor
VI – Assimilar e viver
B - A ORGANIZAÇÃO DA MEMÓRIA
I – Que se deve reter?
II – Por que ordem reter?
III – Como reter?
C - AS NOTAS
I – Como tomar notas
II – Como classificar as notas
III – Como utilizar as notas
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