A Vida Intelectual
A.-D Sertillanges
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Este resumo não se propõe a substituir a leitura da bela obra do Pe. Sertillanges, mas pretende apresentar o núcleo dos ensinamentos por ele transmitidos, aliciando o leitor a conhecê-la em profundidade. Uma das finalidades no LABORATORIUM é fazer uso do conhecimento do passado ao olhar o presente, portanto procuraremos atender aos problemas contemporâneos ao estudar esta obra. Este resumo é, simultaneamente, um manual de estudo e uma reflexão filosófica.
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Capítulo V – O campo do trabalho
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Definir o objecto de estudo cabe a cada um de nós em particular, porém, qualquer que ele seja, devemos ter a precaução de não mergulharmos de imediato, ou de nos fecharmos apenas na especialidade. Deve haver um foco central, mas o nosso estudo deve ser transversal e concêntrico.
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I – A ciência comparada
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A ciência comparada é o «alargamento das especialidades pela aproximação das disciplinas conexas e a subordinação das mesmas e do seu conjunto à filosofia geral e à teologia».
Precisamos ter em conta certos factores:
1) nenhuma ciência é completa em si mesma;
2) todas as ciências são interdependentes;
3) todas elas são subordinadas à filosofia e à teologia.
A essência do método científico é a abstracção. A abstracção é a faculdade da mente humana que nos permite elaborar ou captar conceitos e teorias desde a observação. O método científico consiste em recortar (abstrair) de um determinado objecto um campo definido, e testar uma constante previamente teorizada.
O homem comum do nosso tempo, numa sociedade em que a ciência é uma autoridade de peso, tende a aceitar como Verdade aquilo que é expresso em consensos científicos. O que geralmente não levamos em conta é que, sendo que a ciência é produto da abstracção, é fulcral que exista, após a experimentação científica, algum trabalho de reconciliação do que foi abstraído com o objecto de sua origem.
Isto é, a ciência por si mesma não tem valor ou produtividade a não ser que exista o cientista - o homem - que observa os resultados e os interpreta no esquema do objecto original, e por sua vez, no esquema de toda a realidade. Para isto é precisa a filosofia - não necessariamente os tratados ditos filosóficos, consensualmente ou academicamente creditados, mas a verdadeira filosofia - a rendição do homem às verdades universais, a habilidade de discernir as dependências e as relações das coisas, a honestidade intelectual.
“Será possível estudar uma peça de relógio sem pensar na peça vizinha? Ou estudar um órgão sem tomar em conta o organismo? Do mesmo modo, é impossível avançar em física ou em química sem a matemática, em astronomia sem a mecânica e sem a geologia, em moral sem a psicologia, em psicologia sem as ciências naturais, em coisa alguma sem a história. Todas as ciências são interdependentes; as suas luzes cruzam-se, e qualquer tratado inteligente duma delas implica mais ou menos as outras.”
As próprias divisões que fazemos das ciências são produto da abstração e servem o propósito de ordenar o conhecimento da forma mais eficiente e natural. Junto com essa capacidade abstractiva, temos a capacidade unificadora, e elas, no que diz respeito ao conhecimento devem caminhar de mão dada.
O conjunto das ciências não é mais que o conhecimento unificado - todas elas são necessárias, pois todas elas mostram diferentes planos da realidade. Se as compartimentamos ou desconectamos umas das outras é como se amputássemos várias partes do nosso corpo e os guardássemos em gavetas, isto é, perderiam toda a razão de existir.
A filosofia é a ciência que busca a unidade do conhecimento, por isso todas as ciências devem ser conjuntamente subordinadas a ela; por sua vez, a filosofia é estéril sem a teologia, pois se ela é o amor à sabedoria e ao conhecimento, ela está fundamentalmente dependente da Causa Primeira, a Fonte de toda a realidade e de toda a Sapiência - chamemos-lhe a mente de Deus.
“Hoje que a filosofia esmoreceu, as ciências rebaixam-se e dispersam-se; hoje que se ignora a teologia, a filosofia é estéril, não conclui coisa alguma, faz crítica e faz história sem bússola; é sectária e muitas vezes destruidora, nunca tranquiliza nem ilumina; não ensina. E os seus mestres, que têm a dupla desgraça de ignorar e ignorar que ignoram, consideram a teologia uma coisa do outro mundo.”
Se entendemos o que foi dito, sabemos agora a precaução que devemos ter ao conduzir o estudo segundo a especialidade. Dito de forma simples, pois desenvolveremos este assunto no terceiro subcapítulo, é necessária a especialidade, contando que ela se submeta a uma rede de saberes aos quais nós devemos também um quanto da nossa atenção e estudo.
Tomemos os exemplos de homens virtuosos, como Aristóteles, Leonardo Da Vinci, Bacon, Leibniz ou Goethe. Todos eles se especializaram, mas o que definitivamente os fez seres humanos de tal calibre foi a sua polivalência. É escusado dizer que sem ela não teriam chegado onde chegaram nas suas especialidades.
É, portanto, recomendado que o nosso estudo também abranja certos investigadores que contribuíram para a essência da nossa cultura. Quanto mais nos cultivamos, mais recursos temos disponíveis para realizar a nossa vocação, mais úteis e mais benéficos podemos ser para a sociedade.
No entanto, não espalhemos a nossa atenção ao acaso. A escolha das obras e assuntos de estudo são fundamentais, e é disso mesmo que este livro se ocupa e de que falaremos mais adiante.
“O estudo isolado das matemáticas falseia o juízo, habituando-o a um rigor que nenhuma outra ciência, e menos ainda a vida real comporta. A complexidade da física e da química causa fastio e apouca o espírito. A fisiologia conduz facilmente ao materialismo, a astronomia corre o perigo de habituar à divagação, a geologia converte-vos em galgos que tudo farejam, a literatura torna-vos balofos, a filosofia incha, a teologia expõe-vos ao falso sublime e ao orgulho doutoral. Precisais de passar de um espírito a outro, a fim de os corrigir um pelo outro; precisais de variar as culturas para não cansar o solo.”
Posto tudo isto, Sertillanges sugere que o intelectual, porque pertence ao seu tempo, trabalhe para restituir a ordem de que carecemos. O mundo moderno é hostil à teologia porque é hostil a Deus; abusa da filosofia ao mudar-lhe a definição, retirando-lhe o elemento que lhe dá o nome - a "sophia" - e tornando-a um jogo burocrático e estatístico.
Devemos recuperar essa ordem e descobrir a sua hierarquia, e isso faz-se apelando aos primeiros princípios, investigando a ordem das causalidades. O fim dessa investigação é sempre a Causa Primeira, portanto é ela a luz que ilumina todo o acto de saber.
“Primeiramente como filósofo, por meio da razão, em seguida como teólogo, utilizando a luz que vem do alto, o homem de verdade deve centrar a sua investigação naquilo que é ponto de partida, regra e fim a título primeiro, naquilo que é tudo para tudo e para todos.”
«A unidade da fé dá ao trabalho intelectual o carácter de cooperação imensa». Já referimos no Capítulo II os perigos da profissão intelectual, e um deles é abusar da verdade para obter fama, prestígio, dinheiro, ou qualquer outro bem material e mundano. Devemos ter sempre presente a causa e a finalidade do nosso trabalho - o Deus que tudo sabe, especialmente as nossas mais íntimas intenções e aspirações. Em última instância, trabalhamos por Ele, para Ele. As consequências benéficas que o nosso trabalho pode ter para a humanidade são naturalmente o fruto de nos ligarmos ao Bem supremo.
Será útil para nós dedicarmos um pouco do nosso tempo ao estudo da teologia. Sertillanges recomenda que o façamos por cinco ou seis anos, quatro horas por semana. Sugere que comecemos pela Suma Teológica (Summa Theologiæ) de São Tomás de Aquino, de preferência em latim! Segundo o autor, é perfeitamente possível aprender o básico do latim em dois meses. Recomenda também o Catecismo do Concílio de Trento (Catecismo Romano) e uma obra de introdução de Jacques Maritain, Éléments de Philosophie.
Ideias-chave deste subcapítulo:
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Deve haver um foco central, mas o nosso estudo deve ser transversal e concêntrico.
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Nenhuma ciência é completa em si mesma; todas as ciências são interdependentes; e todas elas são subordinadas à filosofia e à teologia.
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O conjunto das ciências não é mais que o conhecimento unificado - todas elas são necessárias, pois todas elas mostram diferentes planos da realidade.
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Quanto mais nos cultivamos, mais recursos temos disponíveis para realizar a nossa vocação, mais úteis e mais benéficos podemos ser para a sociedade.
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O intelectual que pertence ao seu tempo deve trabalhar para restituir a ordem de que carecemos, e isso faz-se apelando aos primeiros princípios.
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«A unidade da fé dá ao trabalho intelectual o carácter de cooperação imensa»
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O estudo da teologia é recomendado por cinco ou seis anos, quatro horas por semana:
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Suma Teológica, de São Tomás de Aquino, em latim;
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Catecismo Romano;
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Éléments de Philosophie, de Jacques Maritain.
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II – O tomismo, quadro ideal do saber
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Vivemos numa época marcada pelo relativismo, pela hegemonia de uma arbitrariedade moral, pelo materialismo, e por pseudo-filosofias. Este é o quadro perfeito para o caos social do qual já somos testemunhas. Para que possamos vencer esta condição actual necessitamos recuperar as referências que sustentam a existência da nossa civilização. Precisamos de valores, convicções, princípios, mas não nos contentamos com qualquer coisa. Queremos as referências que apontam para o mais elevado que podemos conceber. Para Sertillanges, a referência central é o tomismo.
“(...) estudai S. Tomás; ele é o homem deste tempo. Dir-se-ia que foi criado há sete séculos para apagar a sede dos nossos contemporâneos. Em comparação da água barrenta que nos servem, ele é manancial límpido. Superadas as primeiras dificuldades da maneira de expor arcaica, S. Tomás tranquiliza o espírito, estabelece-o na claridade plena e oferece-lhe quadro maleável e forte para as ulteriores aquisições.”
Segundo Sertillanges, «o tomismo é síntese». Ele concilia sistemas aparentemente antagónicos quando deles extrai o que há de verdade. Ele prefere manter-se no centro, no meio, onde está a virtude. A igreja vê no tomismo a habilidade de manter o estudioso centrado, mesmo quando inundado pelo confuso mar de doutrinas. Como qualquer produto humano, ele não é perfeito, mas não deixa de ser um ponto fulcral para o entendimento da realidade e da inteligência.
“Nenhuma metafísica oferece às ciências da natureza princípios de ordenação e de interpretação mais benéficos; nenhuma psicologia racional condiz mais com os resultados da psicologia experimental e das ciências anexas; nenhuma cosmologia se mostra mais maleável e acolhedora às descobertas que vieram desfazer tantos devaneios antigos; nenhuma moral serve melhor o progresso da consciência humana e das instituições.”
Ideias-chave deste subcapítulo:
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Precisamos das referências que apontam para o mais elevado que podemos conceber. Para Sertillanges, a referência central é o tomismo.
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Comecemos pela Suma Teológica.
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III – A especialidade
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Começámos este capítulo afirmando a necessidade do estudo abrangente e da ciência comparada. Falámos dos perigos da especialidade restrita. Agora, pois, olhamos o outro lado para ver a necessidade da especialidade e os perigos do estudo enciclopédico.
O dano possível para a mente que se dispersa demasiado - o que também discutimos no Capítulo II - é ficar retida na superficialidade. Ora, a ciência pede aprofundamento. A investigação séria que é potência de conhecer verdades, até inefáveis, exige um mergulho, uma penetração, e portanto um compromisso.
A ciência comparada, ou o estudo de temas variados, permite-nos não só uma formação cultural, mas também uma descoberta de nós mesmos. É essa descoberta que nos revela a nossa especialidade, a nossa vocação. Desse momento em diante, o nosso ofício é «cavar».
Conhecermo-nos a nós mesmos é, além da vocação, conhecer também as nossas limitações, e são elas que nos vão orientar no caminho que é o nosso, e não de outro. É também este auto-conhecimento que nos vai refrear ambições injustas, como querer coisas que não nos pertencem, ou querer caminhos e posições que são, por vocação, de outro irmão. Sabermos e aceitarmos o nosso lugar é um bem que só trará vantagens para a nossa vida e nos dará a medida justa do nosso sacrifício. Como já referimos no Capítulo IV, não queremos esforçar-nos além do necessário.
“É preciso descartar a especialidade na medida em que se trata de formar um homem culto e, no que diz respeito ao herói destas páginas, um homem superior; mas é preciso apelar de novo para a especialidade quando se trata de ser um homem que exerce uma função, e se propõe um rendimento útil. Por outras palavras, é preciso compreender tudo, mas com o intuito de chegar a fazer alguma coisa.”
Ideias-chave deste subcapítulo:
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O dano possível para a mente que se dispersa demasiado é ficar retida na superficialidade.
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A ciência - o conhecimento pelas causas - pede aprofundamento.
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A ciência comparada permite-nos não só uma formação cultural, mas também uma descoberta de nós mesmos. É essa descoberta que nos revela a nossa especialidade.
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São as nossas limitaçõesque nos vão orientar no caminho que é o nosso, e não de outro.
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IV – Os sacrifícios necessários
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Em todas as decisões que tomamos na vida, seja no campo profissional, familiar, filosófico, em todas elas estamos realmente a escolher os nossos sacrifícios. Tomar um caminho implica abandonar outros mil. Esse é o primeiro sacrifício. De seguida, sabemos que qualquer caminho, por mais seguro que pareça, será constituído por problemas e dificuldades, obstáculos necessários e por vezes até bem vindos. Há que manter consciência deste facto.
Temos um prazo de vida. Perante a inevitabilidade da morte, há uma pergunta que é nossa conselheira: que posso eu fazer com o meu tempo, que seja bom, belo e verdadeiro, e assim sobreviva à ameaça da inexistência? Nem tudo nos é possível, e essa ideia nos ajudará a mantermo-nos fiéis ao essencial.
“Não vos envergonheis de ignorar o que não podíeis saber senão dispersando-vos. Tende, sim, humildade, porque isso marca a vossa limitação; mas esta faz parte da virtude; dela deriva uma grande dignidade, a dignidade do homem que permanece na sua lei e desempenha a sua missão. Somos afinal bem pouca coisa, mas fazemos parte dum todo, e disso nos honramos. A nossa acção estende-se ainda ao que não fazemos: fá-lo Deus, fazem-no nossos irmãos, e nós vivemos com eles na unidade do amor.”
Ideias-chave deste subcapítulo:
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Qualquer caminho, por mais seguro que pareça, será constituído por problemas e dificuldades.
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Tomar um caminho implica sacrificar outros mil.
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Nem tudo nos é possível, e esta ideia nos ajudará a mantermo-nos fiéis ao essencial.
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A nossa acção estende-se ainda ao que não fazemos: fá-lo Deus, e fazem-no nossos irmãos.
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NO PRÓXIMO CAPÍTULO
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Capítulo VI – O espírito do trabalho
I – O ardor da investigação
II – A concentração
III – A submissão à verdade
IV – Alargamentos
V – O senso do mistério
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